A doação de alimentos, que deveria ser uma ponte natural entre o excesso e a necessidade, sempre encontrou no Brasil uma muralha de entraves jurídicos e regulatórios. O resultado tem sido um paradoxo doloroso: toneladas de alimentos desperdiçados de um lado, milhões de pessoas em insegurança alimentar de outro.
Com a sanção da Lei 15.224/2025, instituidora da Política Nacional de Combate à Perda e ao Desperdício de Alimentos, esse cenário ganha novos contornos. O texto legal traz avanços concretos — ainda que não definitivos — na tentativa de transformar a cultura da doação em prática corrente e segura.
O primeiro grande obstáculo sempre foi o medo da responsabilização. Empresas e estabelecimentos evitavam doar, receosos de que eventuais problemas sanitários resultassem em processos e indenizações. A nova lei busca resolver esse ponto ao limitar a responsabilidade civil do doador apenas a hipóteses de dolo. Isso significa que, na ausência de intenção deliberada de causar dano, a doação passa a ser juridicamente mais protegida. É um avanço relevante, mas que não elimina a possibilidade de litígios em situações nebulosas, como casos de negligência ou falhas de manipulação.
Outro entrave histórico são as normas sanitárias. O Brasil possui um sistema complexo, dividido entre Anvisa, MAPA e vigilâncias locais, que frequentemente aplicam às doações os mesmos padrões de comercialização. A lei reforça a exigência de observância às normas sanitárias, mas não resolve o problema de fundo: a falta de uniformidade e a tendência de fiscalizações locais criarem barreiras práticas. Para muitos doadores, o custo logístico e o risco de interpretações divergentes ainda pesam mais do que o gesto solidário.
No campo tributário, a legislação foi tímida. O projeto original previa benefícios fiscais significativos para incentivar supermercados e grandes redes a doar. Contudo, parte dessas disposições foi vetada. Assim, persiste a contradição: em muitos casos, descartar é mais barato do que doar. A ausência de incentivos robustos limita a escala que a política poderia alcançar.
Ainda assim, a lei trouxe inovações importantes. Uma delas é a autorização expressa para doações diretas ao consumidor final, desde que acompanhadas de atestado profissional que garanta a qualidade do alimento. Outra novidade é o Selo Doador de Alimentos, pensado para reconhecer e valorizar socialmente quem doa. A inclusão de alimentos “imperfeitos”, aqueles com danos estéticos, mas qualidade nutricional preservada, também representa uma mudança cultural relevante, que pode ampliar o alcance das doações.


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